Ou melhor, defeitos, no plural. O principal deles é a curtíssima vida útil (e a ainda menor vida inútil) que obriga grandes projetos a virarem apenas sonhos; que fomenta os verbos no futuro do pretérito (gostaria, seria, faria...) e que transforma humanos em produtos, como o que este anúncio tenta vender.
Talvez por isso, eu, produto tentando ser humano, desde que me lembro, odeio aniversários. Não se pode comemorar ter menos tempo de vida. E se for para comemorar algo, que não se conte em anos, mas em planos para o futuro, viagens, amores, livros, acordes de violão, risadas de criança, almoços de mãe, baladas, tapinhas nas costas, fotografias ou litros de cerveja (bem gelada, de preferência).
E, sinceramente, contar pra que? Afinal, o que conta não é exatamente aquilo que não se conta? E pedindo desculpas pela arrogância tipicamente publicitária, talvez por isso, tenha dó daqueles que passam a vida atrás de números, contas, equações, tentando racionalizar uma vida que deveria ser (e talvez até seja) essencialmente emocional.
Por isso, esse produto quer longe de si a vida média, dominada por idéias feitas de família, carreira e filhos. E, por outro lado, quer dar boas-vindas à inquietação criativa crônica (que evita doenças piores no cérebro), ao frio no estômago e às rasteiras que a vida dá. Afinal, não são esses os inquilinos inevitáveis de todos os riscos? E depois, boto todos eles pra dormir. Ou pra correr. Crio cicatrizes que, como a “tatuagem” de Chico Buarque, dá coragem pra seguir viagem.
Quero juventude plena, com planos próprios de juventude plena. Quero convicções, posições claras, repúdios consolidados só para poder mudar tudo isso assim que eu quiser. Quero achar a mulher da minha vida e ficar com ela por alguns dias até achar outra mulher que seja mais da minha vida. Quero poder ser tudo, quando quiser e ser nada, quando nada me convir ser. Quero ter todas as formas, mas jamais ser quadrado. Quero chegar aos cem anos, aos cem amigos de verdade, às cem noites em cem camas diferentes, aos cem países, sem expectativas.
O produto quer que suas especificações fiquem claras. Fazer perceber bastante suas virtudes e ainda mais seus vícios! Vícios em fotografia, vírgulas, música, ar condicionado, revistas, remédios, strogonoff, países, pessoas, livros, além dos vícios de linguagem que, a essa altura do texto, você já deve ter percebido.
Mas, afinal, para que tudo isso? E não é óbvio? Para que jamais falte assunto numa mesa de bar com meus amigos (ou com desconhecidos); para que a minha vida seja digna de um best-seller ou, no mínimo, de uma crônica do Veríssimo; para que eu perceba um dia que tanto filme queimado durante a vida me rendeu um belo filme e que meu perfil na vida real é mais interessante do que o meu no Orkut, que é bem sem graça.
E como produto bom está sempre bem acompanhado, quero saber escolher quem vai dividir prateleira, conta em bar e cama comigo. Quero saber sobre as férias do meu porteiro, finjir interesse pelas histórias do meu avô, saber quantos ônibus minha empregada pega da casa dela até a minha, qual o salário de um gari uruguaio, o preço de uma garrafa d’água em Israel ou de um suborno policial em São Paulo. Ou você não sabe?
Quero conseguir mostrar para os meus filhos que a falta de perspectivas, de planos, de ética e de alma são drogas muito piores que maconha. E que não seria de todo mal experimentar algumas delas em algum momento da vida. E quero entender (ou pelo menos acreditar) que para conseguir as coisas na vida vou precisar muito mais de verbo que de verba.
Tento ouvir meus pais, tento ouvir os mais velhos e ouço João Gilberto. Aprendo com meus pais, com meus professores e principalmente com meus erros. Recebo com hospitalidade as visitas, as criticas e o sofrimento, até porque quem não sofre é criança a vida toda. Cago para as regras: passo em baixo de escadas, abro guarda-chuvas dentro de casa, mas sei que se não gosto da imagem, não adianta nada quebrar o espelho.
As especificações do produto são difíceis de dizer porque nem mesmo quem o fabricou sabe direito descrevê-lo. Este produto que vos fala também orgulha-se muito em dizer que está constantemente em mutação (e envergonha-se ainda mais ao constatar que disse um clichê) e não pretende se contentar nunca com o que tem porque o contentamento é inóspito, nocivo e atraente à miséria espiritual.
O produto de que tanto falamos é a vida média, sem graça, previsível, roteirizada. Colocada lado a lado com outras tantas iguais a ela, que começam e terminam do mesmo jeito, com as mesmas expectativas, gostos e apreço a domingos depressivos assistindo ao Faustão.
Este anúncio é um engano e, pensando melhor, eu não sou produto e não estou à venda. Pelo menos ainda não. Quero acreditar ou sonhar ser possível fugir dessa gôndola da mesmice. Não sou produto, não sou marca, apenas quero deixar a minha marca em algum lugar.
Bruno Mancini NÃO ESTÁ À VENDA
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*inspirado e para ler ouvindo:
O Teatro Mágico - Insetos InterioresLenine - Ecos do ÃoLobão - El Desdichado IIMônica Salmaso - Na Volta que o Mundo Dá